Era ainda de manhã e a menina do capuchinho vermelho estava impaciente (ainda sem o capuchinho obviamente)...A mãe tinha uma missão para ela. Sendo uma criança pré-púbere, cujo inconsciente e o consciente se imiscuíam, ela sabia que era nesse dia que a sua vida ia mudar. Todas as crianças neste novo mundo de contos de fadas eram assim. De repente, ouve os passos da mãe no corredor e vira-se para olhar o objecto que esta transportava: uma cesta de vime de onde saía o odor de bolos frescos e mel caseiro. Espreitou para dentro e viu ainda algumas maçãs.
- Filha, tens que levar isto à casa da avó que fica depois da floresta…
- Por onde devo ir?
A mãe sabia que no mundo onde o inconsciente não era digno desse nome não valia a pena fazer jogos, mentiras piedosas, enigmas ou qualquer coisa dentro do género.
- Tens dois caminhos, a estrada e a floresta. Não vejo porque não ires pela estrada convencional, mas tu é que decides, já és uma mulherzinha…
- Não não sou! Ainda não sou menstruada! - Disse a menina abespinhada.
- Agora vais ser - afirmou a mãe enquanto lhe colocava o capuchinho vermelho vivo.
A capuchinho não disse mais nada, limitando-se a dar um beijo na cara à mãe e despedindo-se.
Era óbvio que ia pela floresta. Que há de interessante numa estrada igual a todas as outras? Antes perder-se no meio de árvores inofensivas do que ser atropelada…
Embrenhou-se pela floresta e começou a saltitar pelo caminho, sentindo o poder hormonal que se ia apoderando dela a pouco e pouco. Os sons estranhos não a assustavam, ela sabia que mais tarde ou mais cedo ia encontrar algo de inesperado e que ia mudar a sua vida para sempre.
Foi rápido, surpreendente e, de certo modo, reconfortante, ainda que de uma maneira distorcida e completamente "fora": O Lobo surgiu na clareira e roubou-lhe a cesta.
- Mas que faz uma menina tão bonita num sítio tão escuro para a sua beleza?
- Sejamos francos, eu sei que a cesta é só um pretexto para me papares, seu malvado.
- Pois, és bonita e esperta. Não sabes é de que maneira te quero "papar".
- Porquê, há muitas maneiras? Dá-me um chupa.
- O quê??
- Estão na cesta, eu trouxe para o caminho - respondeu ela imediata e secamente
O lobo meteu a pata na cesta, mas...
- NÃO!! Com essa pata porca não! Usa um lenço.
Deu-lhe o chupa e olhou para ela.
- Não te quero papar, só quero a cesta. Para onde vais?
- Para casa da minha avó, na orla da floresta.
- Não pedi a descrição..mas obrigado, já tenho refeição - afirmou o animal provocante.
- Come, eu não gosto nada dela, é chata e faz-me andar quilómetros só para lhe dar bolinhos que não pode fazer porque tem tempo de reformada a mais... - O sarcasmo corria nas veias da rapariga precoce.
O lobo partiu espantado, as crianças do mundo sem inconsciente controlado eram cada vez mais ariscas. Não parava de pensar na insinuação da rapariga.
Não posso, sou um lobo, devia era comê-la e não deixar ossinho...O capuchinho vermelho continuou até à casa da avó.
Bem, a velhinha inocente já não ia chatear mais..Naquele mundo não havia inconsciente, mas a consciência tinha então que se misturar com o que dele restava, sendo o resultado um lugar estranho para as crianças, que lidavam com desejos que supostamente deviam ser inconscientes, como ver-se livre da pobre avó, de uma maneira perfeitamente casual, não lhe dizendo a razão quando parar. Basicamente, eram quase sobredotadas no que se referia às emoções dos outros e ao mundo em si, mas muito pouco sabiam sobre elas próprias, excepto o que não deviam.
Avistou as telhas laranja por trás de uma macieira que já dava frutos. Viu uma maçã brilhante e vermelha no chão.
Bem hoje tudo indica que vou ceder a uma tentação, ou então vou tornar-me uma mulherzinha. Agarrou na maçã e meteu-a no bolso da casaca. Estava tudo silencioso e a avó não estava com o seu habituado ar pasmado na cadeira de baloiço do alpendre. Um jornal encontrava-se pousado no seu lugar. A capa mostrava duas crianças da sua idade, cada uma com um barrete e de sorriso de orelha a orelha, com uma casa coberta de doçuras atrás. "Hansel & Gretel - Vendedores de Doces". Bem, pelos vistos os dois irmãozitos naquele mundo tinham tido uma gota de esperteza, não fugiram da casa depois do homicídio, em legítima defesa, da bruxa, aproveitando toda a doçaria para venda. Noutras divisões da manchete, podiam ler-se notícias acerca da futilidade das princesas, que tinham decidido viver todas juntas com o dinheiro dos seus príncipes; de um feijoeiro até ao céu que conduzia a um parque de diversões e do abandono de três porquinhos pela mãe biológica.
Pousou a publicação e entrou na casa, verificando que o lobo estava na cama, mas fingindo-se despercebida:
- Avó, porque estás deitada?
- É para te receber melhor... - Disse o lobo na sua pior imitação de idosa.
- Ah...estás doente..pobrezinha..deixa-me ver se tens febre.
O lobo não esperava que o raio da miúda se metesse nos lençóis sem mais nem menos.
- A menos que não tenhas feito a depilação, não és a minha avó. O que lhe fizeste?
- Papei-a, como sugeriste.
- Epá, será possível? Isso é daqueles desabafos, não vês que era família? - Disse numa voz que agora fazia notar um leve arrependimento.
- Desculpa! Eu faço tudo para te compensar!
- Fazes...?
- Sim.
- Torna-me mulher. - Afirmou resolutamente.
- O quê? COMO?
- Não sei, mas sei que os rapazes têm alguma coisa a ver com isso. Tu é que deves saber.
- Olha, eu sou um animal que saciou a sua fome, acho que precisas de voltar para casa e fazer perguntas à tua mãe...estás na idade para isso.
- Não disseste que havia outra maneira de papar?
- Desculpa, mas não posso, és menor, esta polícia não tem inconsciente, mas é bem consciente das leis e essas não permitem abuso de menores. Tenho que ir tratar da saúde a uns certos porquinhos...A minha digestão demora apenas duas horas, tenho que comer. Porta-te bem.
E saiu correndo nas quatro patas com uma touca ridícula na cabeça que se esqueceu de tirar.
A menina do capuchinho vermelho olhou para uma foto da avó na cabeceira da cama.
Como pude eu querer que ela morresse? Ela era a minha avó.Uma lágrima caiu no chão e o arrependimento encheu toda a sua mente, quer esta tivesse restrições ou não. Sentiu a maçã e tirou-a do bolso, observando-a. Aquele mundo era como a maçã: tinha sabor, mas não tinha forma única, as pessoas praticamente não tinham nada de secreto para elas, eram todas iguais por dentro; o que as tornava especiais não se mostrava (assim, no nosso mundo pode ver-se que não é apenas o exterior que forma o indivíduo). Contudo, tal como o fruto, podiam adoptar diferentes cores (exterior físico ), mas paladares semelhantes, ainda que não totalmente iguais (interior, que se assemelhava em todos os seres humanos), podendo existir atracção sem inconsciência, embora não houvesse amor no sentido lato. E foi assim que, cedendo às tendências orais como uma criança com inconsciente controlado, que a menina comeu a maçã tornando-se mulher.
No nosso mundo isto estaria errado pois a interpretação dos contos sugere que a dependência oral é sinónimo do infantil. A criança só se torna independente como pessoa quando deixa a dependência da oralidade. Mas este mundo não é contrário ao nosso? As atitudes têm que ser também contrárias. Porque se tornou mulher? Porque devorou o símbolo do seu mundo criando um próprio no interior da sua pessoa: o inconsciente como unidade independente.
Não sabemos como foi a vida da menina após este incidente, mas acreditamos que tenha ido viver para outro mundo: o seu próprio, deixando aquele para sempre, para sua alegria. Como seria se o inconsciente falasse, como naquela dimensão?